O menino de asas

Lucilene Machado

5/8/20242 min read

white bird soaring near tree during daytime
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Conheci o homem pássaro quando eu tinha nove anos. Foi por meio de um livro, não muito conhecido, que instigou todos os meus sentidos de menina que andava de pés no chão. Chamava-se “O menino de asas”. Foi o primeiro livro "sem figuras" que eu li. Um marco no histórico de leituras de uma criança. Aquela procissão de palavras desfilando lentamente em preto e branco pareceu-me entediante. Não recordo a primeira frase, recordo-me, todavia, do contorcionismo mental que desenvolvi para desvendá-la.

Percebi, logo nas páginas iniciais, que as figuras existiam, mas eu é que deveria contorná-las. Estavam subliminares ao texto, presas a algum tipo de código oculto revelado a cada leitor por formas muito diferenciadas. Fui logo instituindo o meu jeito particular de ver. Um jeito só meu. Atrevidamente meu.

Vi o infinito com cores muito diferentes das que ilustravam os livros habituais. O céu poderia ser cor-de-rosa, a terra azul... e o mar poderia engolir o sol quando ele encostasse sua barriga vermelha no horizonte. Claro que fui influenciada pelo protagonista do livro que me emprestou suas asas para que eu pudesse ver o mundo por um prisma muito superior. Li a obra inúmeras vezes. Aprendi a entrar pela boca escancarada da noite e contar estrelas com as pontas dos dedos. Meus sonhos ficavam mais perto de Deus com a ajuda de umas asas que sequer me pertenciam. Cresci, o menino também, transformou-se num homem cuja vocação primordial ainda é voar.

Sempre julguei que voar é um exercício de beleza pouco compreensível à maioria (como é qualquer espécie de beleza). Conhecer as rotas invisíveis, as linhas que cortam o céu com suas cores retorcidas é de uma concretude e de uma subjetividade surpreendentes. Tudo é surpreendente para quem tem asas. Os traçados, as cores, as formas. A verdade voando nas coreografias sagradas abençoadas pelo céu e a solidão dando espetáculos em nuances nunca vistas da terra.

O forasteiro voador necessitava de novas leituras para seguir alimentando sua ficção. O lado humano esguichava seu fastio imemorial. Precisava produzir outros enredos nas páginas inquietas do livro.

Foi assim que, em uma noite de meia idade, o homem pássaro me reencontrou. Eu era uma linha sinuosa desprendida das demais. Um rio caudaloso cujas águas ele quis beber toda de uma vez. Um rio inteiro em sua boca cheia de línguas, cheia de sede, cheia de desejos. Eu pensava que aquela fúria já havia sido domesticada, a imaginação disciplinada e um romantismo manso seria a máxima condição que eu teria de administrar. Mas que nada, as forças primárias seguiam se compenetrando. Ar e água.

Voltei a examinar cada centímetro de suas asas. Frente e verso. Ossos e juntas. Esticava o olhar aqui e ali, em vários ângulos, como uma criança que faz da vida uma ficção. A morte é só uma catarse. A vida seguia fazendo curvas embaixo do meu travesseiro com sua linguagem atrofiada, inteligível, perdendo-se na placidez do escuro. Pois no escuro não se pode tatear as palavras.

Devo dizer que, a mímica vermelha do coração abriu seu paraquedas de dor. A minha consciência nua de gente crescida disse que eu deveria saltar. Para que inventar sorrisos e estrelas? Foi apenas uma imprudência reler o livro empoeirado que traz em suas linhas o fardo pesado de dias e anos. A frustração apareceu carregada de insônia deitando seus olhos compridos sobre uma história que já estava resolvida. Não há nada seguro na literatura. Nem mesmo nos livros infantojuvenis.